sexta-feira, dezembro 05, 2014

Iluminação

As gotas caiam todas iguais. Uma e depois a outra e depois a outra e depois e depois e depois, e antes já tinha tudo sido dessa mesma forma. Era tudo tão previsível que ele enxergava cada uma das gotas, como se estivesse num estado de consciência expandida. 
“Sou um buda”, pensou. 
"Um bunda". 
"Mole".

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Sonâmbulo

Abriu o olho novamente e já não estava no avião. Suas pernas o levavam decididas para algum lugar desconhecido. Ainda um pouco sonolento, se recordou de que tinha pousado, recolhido a bagagem na esteira e tomado um taxi até o centro, que tinha dado ao taxista uma nota de cinquenta e recebido vinte e sete rais de troco. Não se lembrava, porém, que centro era esse, nem porque ia para lá.

Por um momento teve dúvidas se teria ainda o controle do próprio corpo, mas com menos que um pensamento, foi capaz de parar. Assustado com a força da própria determinação, deu uma rápida olhada em volta e seguiu andando, agora um pouco mais deselegante, um pouco mais devagar, um pouco menos decidido. "Para onde devo ir, agora que estou novamente no comando?" Andou mais alguns passos e, sem saber o que fazer com a própria liberdade, decidiu sentar-se no banco.

Mais uma vez se lembrou do avião, da bagagem, do taxi. Lembrou ainda da noite anterior, do copo de whisky, do maço de cigarros, do vestido que escondia muito pouco, na mesa ao lado, do olhar de relance. Teve que conter o sorriso, pois alguém podia estar olhando. Não é pertinente rir a toa num banco de praça, em plena segunda-feira. Deixasse o riso para a noite, ou, melhor, para o fim de semana.

Mergulhava mais uma vez em divagações. A pertinência do sorriso, a noite anterior, o troco do taxi, não deixaram que percebesse as próprias pernas, que se punham novamente em movimento. Dessa vez não quis impedí-las. Foda-se, pensou, lembrando o desconforto de minutos atrás. Foi assim que ele assistiu suas mãos chamarem o elevador, seus pés o levarem à sala de reuniões. Quase sentiu cócegas quando o ar fez tremer suas cordas vocais e ficou intrigado tentando compreender as palavras que proferia, todas encadeadinhas, como que ensaiadas. Seus olhos se fecharam por dentro enquanto os demais presentes proferiram seus discursos ininteligíveis, suas mãos aplaudíram sozinhas e quando se deu por si, já estava no quarto do hotel, zapeando automaticamente por programas de televisão que lhe interessavam um menos que o outro.

Naquela noite, sonhou que era sábado, e que ia para o trabalho. Sonhou um sonho esquisito, contínuo e sem nenhuma névoa, nem uma gota de fantasia. Sonhou que sabia o que estava fazendo, e que lia relatórios, que fazia contas de dividir e de multiplicar, que anotava os resultados em tabelas complicadas, analisava os resultados e os comentava ao telefone. Chovia do lado de fora, mas não havia tempo. E acordou cansado, mais uma vez.

sábado, julho 21, 2012

A noite nunca acaba

Mais um cigarro e a noita acabou, pensou Antonio enquanto pagava a saideira. A construção de espectavidas mata um homem. Um ser humano. Mulher ou homem. Dá tuno do mesmo. Somos animais. Uma horda de bárbaros vestindo ternos, saias, roupas de marca ou sem marca, all star e camisetas legais. Tanto faz. Antonio acendeu o cigarro que ia acompanhar a heineken quase gelada que ele acabava de comprar no posto de gasolina. Obviamente o cigarro acabou antes da cerveja e a noite não acabou ali. A noite nunca acaba, se ela está em você.

quarta-feira, junho 13, 2012

Um poema bobo (ou um suspiro longo)



As folhas caíram e o inverno, apressado, chegou tropical. Molhou quem viu pela frente, com um cinza desinteressado, e seguiu adiante sem sequer olhar para trás. Sempre apressado, chegou temperado ao lugar mais quente do planeta, que o sublimaria em lágrimas de todas as cores - reais e imaginárias.

E, assim, a menina chorou. Os amores de ontem, os amores que vêm. Dourados raios de sol iluminar-lhe-iam o rosto quando, em agosto, fosse a hora do verão lhe despertar do seu sono orvalhado.

Suaves carinhos calientes em raios lamberiam seu rosto. No pescoço, um beijo ardente faria suar sua pele sutil. E o perfume que brota, quando ela acorda, já preenchido o mundo, não nos permite mais uma noite sequer sem sonhar.

Ai de mim!

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

O dente do Juízo

Flávio Arturo Torquetto tinha 32 anos de idade, um emprego estável, uma namorada bonita e um problema imaginário. Ainda se sentia bem jovem, embora os sinais de que o tempo estava passando aparecessem com alguma frequência, agora. A falta de ânimo para ficar acordado até tarde, as ressacas homéricas, a apreciação do silêncio e da quietude... Seu aniversário havia sido muito bem comemorado com um jantar caro, a visita dos seus pais e alguns bons presentes. Flávio decidiu comer peixe naquela noite, o que não era habitual. Preferia carne, mas ultimamente andava preocupado com o peso. Não tinha mais vinte e poucos anos.

Havia ingressado no serviço público na busca de estabilidade e de sossego. Encontrou. O salário pagava um bom apartamento, afastado do centro, onde ele acordava com o canto dos passarinhos e cheiro de mato molhado, mesmo estando há apenas três minutos de um supermercado e dez de um shopping center. Namorava uma menina recém-formada, cuja ocupação era estudar para concursos. Ela o admirava bastante. Tão sério, responsável, inteligente. Passou sem estudar, suspirava. A sorte não dá conta dessas coisas. Tinha tudo para se considerar um homem realizado e feliz, aproveitando os últimos suspiros de uma vida boêmia, de uns poucos excessos, de um salário de gente grande, ainda sem o peso de uma família para sustentar. Ia criando juízo aos poucos, se orgulhava sua mãe.

Mas ultimamente vinha se sentindo mal e não conseguia entender o porquê. Uma coceira misteriosa na gengiva, como se fosse um dente que quisesse sair. Mas aos 32 anos? Não seria possível. Tinha esperado que todos os 32 dentes saíssem para extrair, de uma só vez, os quatro sobressalentes, e isso fazia mais de 10 anos!

Alguns dias, quando dormia sozinho, acordava sobressaltado. O dente imaginário doía como se perfurasse a gengiva, que coçava e coçava muito e o único alívio possível era morder o que quer que encontrasse pela casa, desde os lápis e as canetas ao cabo da escova, dos talheres e até o lombo livros menores. Flávio, numa noite de quase desespero, Procurou na internet e encontrou um aplicativo para o celular que seria capaz de tirar radiografias. Custou USD 7.99. Na foto, borrada e escura, uma mancha branca foi o suficiente para confirmar as suspeitas. Era um dente novo, saído, sabe deus de que inferno. Seria ele um elo perdido na evolução humana, uma espécie de Chimpanzé superinteligente? Ou melhor, estaria ele um passo atrás dos outros homens, involuindo ao invés de evoluir, rumo a um estado pré homo sapiens? Justo ele que era tão moderno, tão inteligente, tão civilizado e bem sucedido?

Foi ao dentista. Este riu incrédulo da situação relatada, tentou dissuadir Flávio da ideia de que houvesse um dente fantasma nascendo em sua boca, maldisse os irresponsáveis que vendem esse tipo de porcaria para celular - No meu tempo, telefone era para fazer ligação! -, mas acabou, relutantemente, cedendo em prescrever uma radiografia da arcada dentária. Dessa vez uma de verdade.

A namorada de Flávio era uma menina doce e gentil e fez questão de acompanhá-lo no exame. Afinal de contas, não era como se estivesse realmente ocupada com outra coisa que não Flávio. Para sua infelicidade, não pode entrar com ele na sala do raio-x, e ficou realmente alarmada quando lhe explicaram que a exposição a esses raios causava câncer.

Durante aquela semana, Flávio dormiu com ela somente duas vezes, e teve que tomar remédio para conseguir pegar no sono. Nas outras noites, foi à varanda e ficou fumando cigarros enquanto tentava organizar as ideias. Não queria que sua namorada soubesse que estava fumando. Aliás, não estava. Estava apenas muito preocupado e precisava pensar.

A radiografia não apontou nada, o que ao invés de melhorar, piorou o humor de Flávio. Sua namorada não entendia, e começava a perder a paciência com ele, sempre com o cenho franzido, sempre aéreo e mal humorado. Flávio a evitava. Estava tendo problemas para dormir e preferia ficar acordado sozinho, fumando, que tomando remédios e fingindo que estava tudo bem. A menina detestava fumaça de cigarros, detestava ver Flávio preocupado, aliás, detestava tudo o que saísse do padrão de felicidade e sossego que eles haviam elaborado, cada um ao seu jeito.

Flávio não era mais o mesmo. Passou a se atrasar para o trabalho, se apresentar com a barba mal feita, a gravata torta. Nem bem sentava na mesa, já se levantava e ia buscar café. Acabou que, sem que ninguém conseguisse evitar, o bule foi parar na sua sala. Seria possível que houvesse um dente invisível crescendo dentro de sua cabeça? Seria um nervo louco que continuava sentindo o dente arrancado 10 anos antes? Mas por que só agora? A concentração diminuía, e como ocorre no serviço público, Flávio foi punido simbolicamente, passando a receber cada vez menores quantidades de trabalho.

Seu relacionamento também foi para o buraco. Na realidade, ele nem gostava muito mesmo daquela menina abestalhada que tinha medo de raio-x, e cujo ideal de felicidade era morar junto com um cara que aceitasse dividir as tarefas domésticas. Hoje eu cozinho e você lava os pratos, amanhã é a minha vez, cada semana um dos dois tira o lixo e assim vamos viver harmoniosaaaaaaaaaaaaarrrgh! Não quero mais te ver, desculpa. Não é você, sou eu. Estou passando por uma fase difícil. Não, não é um clichê, é um arquétipo, algo que é inerente a todas as relações humanas, desde os tempos das cavernas até... Não, desculpa, não estou falando difícil para mudar o foco da discussão, aliás, quer saber? É você sim. ODEIO LAVAR PRATO, ODEIO FAZER A CAMA. Não, desculpa. Estou passando por uma fase difícil, é sério. Te ligo, não se preocupa. Até que enfim ela saiu daqui. Acende um cigarro, paga a conta. Não pode fumar, aqui senhor, é lugar fechado. PUTA QUE O PARIU! Isso aqui em cima é uma porra de um toldo e... Aliás, quer saber, me passa a maquininha pra cá e se quiser chama a polícia, falou? Eu mesmo digito, essa bosta!

Vai andando para casa. Tem whisky em casa. Whisky e um alicate. O caminho é longo e as ideias vão se acumulando. O whisky desce rápido; o alicate, não tão rápido. A cabeça roda, o mundo gira, a luz apaga.

No dia seguinte Flavio acorda no hospital, sem saber nem bem ao certo como foi parar ali. A boca está tão inchada que é como se fosse uma outra cabeça brotano da sua. Tem sangue para todo lado, na camisa, no lençol. Na cabeceira de sua maca, além de um frasco de iodo, água oxigenada, alcóol e uma porção de instrumentos de tortura medieval, tem um dentinho em miniatura. Daqueles que parecem dente de leite, mas com uma raiz bem, longa, de uma ponta só, que no final, cresce como se fosse um rabo de arraia. Ou a cauda do demônio, pensa.

Tem algo de marinho nos dentes, pensa flávio, antes de apagar outra vez. É como se fossem criaturas marinhas fossilizadas, quem sabe uma água-viva paleolítica, quem sabe um coral, Eles crescem em nossas bocas. São organismos independentes de nós.... que se alimentam da nossa energia, do nosso sangue. E tem sangue para todo lado.

sábado, novembro 12, 2011

Microconto XXXII - Obituario

António não sabia que era a sua última coca-cola. Tomou de um gole, com pressa, jogou metade da lata fora e saiu correndo, atrasado que estava para um compromisso muito menos importante que aquela coca-cola.

sábado, agosto 27, 2011

Amnésia Alcólica


Intenso foi o sentimento daquela manhã calma e fria. Parecia que olhava tudo com olhos de criança, tudo era novo de novo. Como se tivesse acordado de uma amnésia alcóolica que começou aos dezesseis anos. Logo após aquela festa. Não. Aquele bar. Eu lembro de caminhar por uma rua movimentada, lembro das luzes, lembro de conhecer uma menina. Mas está tudo muito embaçado e o barulho das pessoas falando me impede de escutar o que ela dizia. A música vindo de 3 carros diferentes competindo pra ver quem tem o pau maior me impede de escutar a minha própria voz. Algumas cenas estão pela metade, outras sem foco, outras, ainda, são flashes incompreensíveis.

Ele caminha descalço. Sente a grama fria no pé, uma manta de lã no ombro protege o peito. Ele se sente tranquilo enquanto vai até a beira do rio e senta num pedregulho. Devia ter feito café. Inútil lembrar quando começou a tomar café. Foi depois de velho? Quando entrou no serviço público? No cursinho, estudando pro vestibular? É inútil, inútil. Inútil e sem propósito tentar lembrar de tanta coisa. Um erro imbecil achar que somos memória. Não. Somos presente e futuro. Não. Somos memória. Que bosta. É como tentar restaurar uma fita de vídeo cassete. Você limpa tudo, mas alguns pedaços já estão estragados, desses você nunca vai saber nada, pode cortar e jogar fora, outros ficam borrados. Em alguns você não ouve o som, em outros você só ouve o som, em outros, as imágens estão sem foco ou são flashes incompreensíveis.

De onde eu conheço essa frase? Será que fui eu quem falei? Será que foi ela? Lembro de um beijo intenso, de uma camisa vermelha, de cabelos mexendo frenéticamente. Lembro de não lembrar de onde saiam meus impulsos, mas de me dirigir a ela sem saber o que dizer. Lembro de uma conversa chata pra cacete com amigos de amigos. Há quem diga que é uma forma de fugir, que é fingimento, mas eu tento lembrar e não consigo. Eu devia ter feito um café antes de vir pra fora. Que frio do caralho. Parecia um redemoinho em sua cabeça. O sol começava a levantar. A claridade já anunciava o dia desde as 5h30, mas a claridade é fria e o sol é quente. O sol chega primeiro na altura dos olhos, mas rapidamente desce até os pés e começa a esquentar. Deixa o café pra depois.

Intenso é o sentimento de não saber como chegou aqui. Um dia você acorda e estranha sua cama, estranha seus lençóis e seus hábitos, sua cara no espelho. A boca seca, o gosto de cigarro, jornal, sei lá o que eu comi antes de dormir! O que está me fazendo tão mal. E você não lembra. E já faz tanto tempo. Aquele beijo intenso. A ligação no outro dia, o frio na barriga, o casamento. Flashes. Memória suja e fragmentada de uma pessoa que eu não reconheço. Será que eu estive bêbado esse tempo todo? O sol leva menos de 20 minutos para secar o sereno da grama, a manta já caiu do ombro. Um café iria bem. Melhor levantar e fazer um, antes que o dia fique quente, antes que eu perca esse momento. Antes que ele se torne só mais uma memória difusa de alguém que não sou mais eu.

terça-feira, novembro 30, 2010

O Mapa de Memórias

Duas partículas dançavam em volta de si mesmas. A leveza de seus movimentos e o brilho pálido na escuridão nos levariam a inferir que fossem partículas da alma. Como sabemos, a alma é formada de partículas espalhadas pelo corpo humano. Elas se movem livremente em meio às outras, mas, ao contrário destas, não se unem para formar células, tecidos ou órgãos. Elas vão e vêm, em movimentos suaves, percorrendo o corpo e coletando informações que são gravadas em sua estrutura, como deformações em seus tamanhos e pesos. Um homem adulto pode chegar a ter 5 bilhões de partículas em sua alma: um número insignificante se comparado com qualquer outro elemento encontrado no corpo humano.

De qualquer maneira, essas duas partículas estavam dançando em volta de si mesmas. A sutileza de seus movimentos e o brilho escasso, em meio à escuridão, nos levariam a crer que eram partículas da alma. Mas não eram. Quando o corpo morre, a alma se dispersa quase imediatamente. Mas, por um momento que leva não mais que uma fração de segundos, todas as partículas da alma - repentinamente livres de sua função e, de algum modo, cientes de terem desempenhado um papel inútil ao longo de toda uma vida -, se juntam para formar um mapa de lembranças. O corpo moribundo as recebe como uma memória condensada e completa de toda a sua existência terrena, um relato que engloba tanto o que os sentidos perceberam, quanto o que o coração e outros órgãos mais sutis sentiram em cada momento vivido. Os poucos que viveram para contar a experiência da morte - ou quase morte, nesses casos - descrevem essa memória condensada como um filme, embora a riqueza de detalhes e de sensações seja irreproduzível, dadas as limitações tecnológicas do audiovisual contemporâneo.

Mas, voltando ao nosso relato, havia duas partículas dançando no escuro. Seus movimentos suaves e seu brilho lúgubre poderia nos levar a acreditar que fossem partículas pertencentes a uma alma humana. E eram, de certa forma. Mas não exatamente. Após se reunirem uma última vez como partes da alma, atraídas pelo derradeiro suspiro de vida que abandona o corpo, e após formarem o conglomerado de memórias organizadas em seqüência impecavelmente lógica que presenteia o corpo moribundo com o “filme da sua vida”, pode acontecer algo raro. Em pouquíssimos casos - não há registros confiáveis de que o ocorrido ocorra mais de uma vez por década -, pode haver uma mutação nas partículas da alma. No momento em que, pela primeira e única vez, trabalham em conjunto, e não separadamente, as partículas, ao invés de se dispersarem, ficam presas umas às outras e passam a agir como um único corpo etéreo. O corpo morre, a alma não se esvai, como seria natural, e algo, que não seria correto chamar de alma, é deixado "vivo". Um espectro de partículas difusas cheio de memórias, anseios e propósitos de uma vida que não existe mais: a esse curioso fenômeno costuma-se chamar de fantasma.

Enfim, as duas partículas dançavam uma junto à outra. Seus movimentos pálidos e seu brilho tímido poderiam ter nos levado à inferência de que se tratasse de partículas da alma. Mas não. Elas se moviam demasiado próximas uma da outra e seu comportamento sincrônico e programado não era o de partículas da alma. Os outros bilhões de partículas que se moviam com a mesma cadência, com o mesmo propósito, condensadas num corpo rarefeito, brilhavam o brilho pálido que dava ao todo uma aparência que, por falta de adjetivos, chamarei de fantasmagórica. Todas juntas, se moviam obstinadamente enquanto o fantasma caminhava sobre a terra, atravessava portas e edifícios, assustando crianças enquanto seguia em frente sem propósito claro, revelando ao mundo, junto com as memórias de uma vida comum, muitos dos segredos da insólita biologia transcendental.

quinta-feira, maio 20, 2010

O tamanho das coisas

Diante de tamanha tempestade, muitos se acovardaram. Escondidos embaixo de suas capas de chuva, de seus carros com ar condicionado, de toldos cuja cor desbotava pela ação do sol e da fumaça, rezavam para que passasse logo. Tão logo as ondas se revoltaram e invadiram o continente aterrado, alguns, num claro acesso de egocentrismo, gritaram tratar-se do fim do mundo. Outros, os mais práticos, se limitaram a correr dalí.

Tinha sido só uma tempestade. E no dia seguinte o estrago foi limpado por garis sorridentes e comerciantes enfadonhos. Cada um cuidando o seu proprio umbigo; todos iluminados por um filete do sol mais bonito: aquele que ilumina o dia molhado depois da tempestade.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Fragmento



Déficit de instabilidade é o diagnóstico daquele que passa parte considerável da vida sem olhar para a lua, ou mesmo experienciar a noite. O contacto excessivo com o período diúrno força grave definição de coisas, pois o sol tudo delineia, tudo forma de maneira absoluta, apagando os dissensos e as ambigüidades naturais e necessárias.

Caminhar à luz da lua, ao menos duas vezes por ano, força no homem a percepção da sombra que se forma na ausência das cores, a inferência da forma não vista, constituindo forte exercício para a mente, que deve trabalhar a dimensão instável das coisas.

A estabilidade aparente dos objetos à luz do dia atrofia, no homem, a partir de parte do bulbo cerebral, os orgãos sutis, como a alma, ao passo que endurece os ossos e as juntas. Passa o indivíduo a constituir criatura sólida, destutuida de sombras, imperfeições cutâneas e profundidade de intelecto. Um todo de cores absolutas, perfeitamente definido e sem nuances, completamente desinteresante.

Para previnir o défict de instabilidade, faz-se necessária a manutenção do hábito da penúmbra, o rigor na observação do objeto invisível, mas existente - ou o contrário. O efeito da observação obscura prolongada é capaz de relativizar mesmo o mais claro sol de domingo, e previnir qualquer possibilidade de tarde banal.